Sobre o amor: Conto 1 - O sonho do Sr. André. Por Jeiane Costa
Jeiane Costa*
O sonho do Sr. André
- Bravooooo!!!! Bravoooooo!!!!
Ao ouvir essas palavras do público misturadas aos aplausos - que agora estava de pé à minha volta - meu coração transbordou de alegria. Minhas mãos ainda unidas ao peito como se eu estivesse rezando, suavam enquanto meus olhos começavam a ficar marejados. Meus lábios ainda estavam entreabertos de espanto enquanto eu me dava conta de que ele havia conseguido! Espera um pouco... Meu pai pela primeira vez estava chorando?
Sim, ele estava! Com um lenço puído que ele mantinha do tempo que namorava com mamãe, ele acabava de timidamente enxugar suas lágrimas, ainda no palco. Ele parecia em transe, como se não acreditasse no que estava acontecendo.
E tudo isso graças a mais uma estupidez da minha irmã que mantinha-se sorridente ao seu lado. Mas pela primeira vez ela acertara na sua loucura. Tudo começou a duas semanas atrás quando durante uma faxina, ela encontrou atrás do guarda-roupa de papai uma porta secreta.
Quem diria que aquela casa velha teria algo do tipo? Quando Susana me contou que havia encontrado tal coisa, imaginei que fosse mais uma de suas histórias malucas (ela adorava criar histórias, diga-se de passagem). Mas ela me torrou a paciência durante os próximos três dias sobre o tal lugar misteriosa, e, para me ver livre de tal situação, resolvi acompanhá-la.
Fomos ao quarto de papai no momento em que ele estava trabalhando. Empurramos o guarda-roupa e surpreendentemente eu me deparei com a tal entrada. Instantaneamente me lembrei do livro as crônicas de Nárnia e pensei: “isso não pode estar acontecendo”.
Susana riu como se soubesse o que eu estava pensando. Toquei incrédula à porta e com um estalo, ela mostrou-se trancada. Bufei frustrada.
- está trancada, Suzi. Vamos voltar!
- toda porta tem uma chave, não tem? – replicou, ela satisfeita exibindo um colar que eu não sabia que ela tinha. Ao puxa-lo de dentro da camisa, uma chave pendurada no lugar do pingente reluziu meio a escuridão
-Como você consegue essas coisas?
Ela deu de ombros como resposta. Após girar o trinco, ouviu-se um estalo. O cheiro indicava que ela claramente havia sido aberta nesses últimos dias e eu bem sabia quem havia feito tal proeza.
Eu podia ouvir o som do meu coração batendo quando finalmente a porta se abriu por completo. E obviamente, não havia nenhum mundo mágico como Nárnia ali. À primeira vista, parecia apenas um montueiro de caixas empoeiradas, e batendo o pé no chão impaciente, indiquei minha saída. Contudo, antes que desse um passo para trás, senti a mão suave de Susana envolver-me. Ela era o oposto de mim em tudo, inclusive na teimosia.
- espere! – pediu, ela enquanto tocava com a outra mão a parede ao seu lado
Uma luz fraca iluminou o ambiente. Senti minha boca abrir e de alguma maneira eu não conseguia coloca-la de volta no lugar.
Susana sorriu.
- o que foi? – perguntei, torcendo os lábios
- sua cara de espanto. Você estava engraçada. – respondeu, ela enquanto aproximava-se de uma das caixas antigas. Pareciam que iriam se esfarelar a qualquer momento. – toma.
Segura essa aqui.
A caixa era mais leve do que supus. Quando abri, vi de dentro reluzir um trompete. Assim como tudo desse cômodo, ele era antigo, mesmo assim era algo incrível.
Eu olhei para Susana intrigada, e algo chamou minha atenção. Atrás dela havia vários troféus e fotografias de concurso de música. Coloquei com cuidado a caixa no chão quando Susana me entregou um pacote. Era um maço de cartas.
-leia – pediu, ela
- eu não posso. Pertence a alguém... não tenho direito!
- leia... você precisa saber sobre uma coisa!
Antes que respondesse qualquer coisa, uma zoada atraiu nossa atenção. O som do portão da rua trincando, indicava que papai acabava de chegar do serviço.- Mexer em suas coisas sem permissão certamente o deixaria fulo da vida. Com a pouca experiência de vida, eu aprendi que não era bom cutucar uma onça velha com vara curta. Só Susana para adorar se arriscar. A vida dela era uma verdadeira aventura - Desesperada, coloquei rapidamente tudo no lugar e arrastei a biruta comigo.
Mas algo havia acontecido. Eu passei a noite inteira pensando sobre o que aconteceu, e, no dia seguinte, no mesmo horário, pedi a ela que me levasse de volta aquele lugar. Prontamente, invadimos o pequeno cômodo, já decididas sobre o que buscar. Enquanto silenciosamente eu lia as cartas, Susana empenhava-se em organizar e limpar cada item. Quando novamente ouvimos o familiar som do portão trincando, fechamos a porta.
No terceiro dia, continuei minha leitura. A ultima carta terminou e atrás havia uma fotografia de um estrangeiro segurando um trompete, chamado Louis Armstrong e atrás uma mensagem escrita caprichosamente por mamãe “meu bem, nunca deixe de sonhar. Que ele seja uma inspiração para você. De quem muito te ama, Berenice”.
Não sei quando uma lágrima tocou minha pele. Agora o conteúdo das cartas faziam sentido para mim. Durante todos esses anos, papai havia trabalhado em uma oficina do bairro como sapateiro enquanto enterrava o seu talento. Ele trocou o seu sonho para manter a nossa família, quando mamãe faleceu.
Susana parecia saber o que eu estava pensando quando ela gentilmente segurou minha mão. Isso não era justo com o papai. Ele foi o melhor trompetista da cidade e agora se tornara um simples sapateiro! Não que o trabalho dele fosse indigno ou algo do tipo... Mas ele precisava reviver aquilo que ele deixara para trás. Eu não tinha ideia de como isso aconteceria mas ele precisava de uma nova oportunidade.
No dia seguinte, enquanto papai terminava de escovar os cabelos, Susana começou a tagarelar sobre sonhos.
- aonde você quer chegar com esse assunto, Susana? – interrompeu, ele bruscamente enquanto pescava sua pasta de trabalho da cadeira de maneira voraz – a vida nos prega obrigações e responsabilidades! Você precisa entender isso!
- sim senhor... – disse, ela antes de virar as costas e sumir de vista. Senti um aperto no meu coração. Quando papai se tornara assim?
Quando ele saiu, encontrei Susana no canto do quarto abraçando as pernas com o queixo encostado nos joelhos. Seus olhos eram tristes. Abracei-a ternamente e ela deixou escapar um fungado. Um longo silêncio percorreu sobre nós.
- tenho uma ideia! – disse, ela para meu espanto. Revirei os olhos.
- eu ouvi anunciar no rádio pela manhã que eles estão lançando um concurso de caça-talentos... você pode apresentar o que quiser e... E o vencedor ganhará muitos cruzeiros. O valor dá pra comprar uma casa nova!
- papai não vai querer se mudar, essa é a nossa casa!
- esse não é o ponto... – replicou, ela impaciente levantando-se – através do concurso, papai voltará a ser quem ele era!
- e como você vai fazer ele voltar a tocar aquele trompete, espertinha?
- deixa comigo!
* * *
Nos próximos dias, vi Susana agir como louca. Ela escreveu uma carta ao tal programa do rádio contando um pouco sobre a história de papai – à sua maneira sonhadora, é claro, e passou a conversar com ele sobre esses assuntos.
Susana mantinha o coração cheio de esperança. Finalmente chegou o dia do evento. Papai acreditava que ela iria apenas cantar alguma coisa para esse tal programa. Assim como eu, ele queria se ver livre dessa ideia e concordou leva-la ao concurso. Mal imaginava ele que ele seria o centro das atenções.
O estúdio era maior do que eu esperava. Havia mais pessoas do que a principio aparentava. Os candidatos começaram a apresentar-se. E finalmente o número 28 foi chamado. Era a nossa vez.
À seguir, tudo parecia acontecer em câmera lenta.
Da plateia, vi quando Susana disse alguma coisa no ouvido de papai e enquanto segurava-o pela cintura, meio a um abraço, o trouxe lentamente para o centro do palco. De dentro da caixa misteriosa que ela carregava com a outra mão pela alça, saiu o trompete de papai, que por sua vez parecia paralisado.
Com um sorriso doce ela o incentivou. Segurei o pingente do meu colar com uma força exagerada, imaginando apavorada o que iria acontecer em seguida. Mas para minha surpresa, ele aceitou o objeto caprichosamente lustrado. Deixei escapar um silvo ao ouvir a banda atrás começar a timidamente tocar os primeiros arranjos.
Olhei em volta e a multidão parecia prender a respiração, atenta. Fechei os olhos e surpreendentemente eu ouvi papai tocar pela primeira vez. Era algo sublime. Era a música que ele em secreto cantarolava, sempre que se lembrava de mamãe – que mundo maravilhoso, de Louis Armstrong - Eu podia sentir a música em minhas veias. Apesar de toda indiferença que ele se esforçava manter em relação ao seu talento, assim como o guerreiro Aquiles teve seu disfarce feminino na ilha Skiros desmascarado por Ulisses ao segurar uma espada, revelando-se o guerreiro que de fato era, papai teve toda a sua dureza quebrada naquele momento. Uma onda magnética percorreu por todo o meu corpo quando Susane o acompanhou, soltando sua bela voz.
Eu sentia orgulho. Uma felicidade inexplicável.
Eu jamais esquecerei aquela noite. A noite que eu vi meu pai sorrir e chorar ao mesmo tempo emocionado. Grato pela vida. Grato por tudo.
*Jeiane Costa: Brasileira, nascida em 28 de março de 1991, descobriu o amor às palavras ainda criança. Desde adolescente escrevia textos com pequenas narrativas apenas para diversão da família e amigos. Paralelo a isso, sempre buscou se expressar através da arte com desenhos que retratassem o ser humano e o meio no qual está inserido. Sempre almejou tornar-se romancista. Atualmente, colabora com o Portal Olhar Dinâmico através do projeto “Sobre o amor” onde apresenta contos e ilustrações que tratam à temática. Sonha em alcançar leitores adultos que ainda possuem no coração o romance juvenil.