Em homenagem ao dia dos pais, Narrativa: "O Reencontro" de Jeiane Costa
O reencontro
Por Jeiane Costa
Quando eu era criança, eu não via a hora de crescer. Queria ficar alta, independente, casar e ter filhos. Com o passar dos anos, esse momento que eu tanto ansiava na infância naturalmente aconteceu: eu me tornei adulta, conheci alguém que ocupou espaço no meu coração o suficiente para eu decidir ir embora da cidade e deixar tudo para trás – inclusive o meu viúvo pai – por acreditar piamente que esse novo amor seria a minha verdadeira felicidade.
O destino obediente aos meus anseios me levou para longe de casa durante longos quinze anos. Todavia, ao desejar essas coisas, não imaginava que a vida me cobraria de volta algumas lições muito importantes, entre elas, o significado profundo das palavras saudade, arrependimento e perdão.
Após todo esse período, como quem desperta de um sono, descobri o quanto eu havia me enganado. A música de roda que eu cantarolava durante as brincadeiras de ciranda quando pequena, era mera ilusão: O anel que Marcelo me deu, era vidro se quebrou. O amor que ele me tinha, era pouco se acabou. Toda promessa de felicidade fracassou e em seu lugar, veio o decreto de divórcio.
Durante dias, sentada na porta de casa, passei a observar o movimento das pessoas - alheias a minha vida – que transitavam na minha rua, buscando entender que fim levaria o meu solitário destino. Em algum momento de meu devaneio, deparei-me com o mesmo céu estrelado que tinha na minha infância, e eu me lembrei das noites em que juntamente com papai, sentávamos em um pequeno banco de madeira enquanto ele me contava fatos curiosos sobre as constelações celestes.
Meu coração apertou.
Minha mente como um quebra-cabeça foi preenchida com memórias de quando eu era pequena. Sempre que eu me deparava com uma situação assustadora, eu apertava a mão de papai, porque sabia que ele me defenderia. Se eu me machucava, corria até ele que prontamente me socorria. Se eu tinha fome, não importava o quanto o alimento era escasso, ele sempre encontrava algo bom para eu me saciar.
Ao seu lado, eu era feliz. Completa.
Agora adulta, tive que aprender a lutar com meus próprios problemas: mesmo apavorada diante das situações impostas pela vida, se eu me machucava ou sentia fome, precisava ter força suficiente para superar tudo sozinha.
Eu estava aos pedaços e incompleta.
Papai era humilde em todos os aspectos – sua pele castigada pelo tempo era morena assim como os grãos de café que ele colhia arduamente. Apesar de ser possuidor de sabedorias populares e se expressar de maneira rude, através de palavras ligeiras com vocabulário exíguo devido ao pouco estudo (ele sabia apenas escrever seu nome), ele era o exemplo de dignidade. Mesmo com todos esses atributos, eu jamais consegui dizer-lhe em palavras o quanto eu o amava. O que mais uma vez provava que eu estava errada. Eu precisava fazer alguma coisa. Eu não poderia continuar a viver assim.
Então, levantando-me da calçada fria, eu tomei a decisão mais importante da minha vida.
* * * *
Eis que após enfrentar oito horas de viagem, cruzar diversos estados brasileiros, finalmente cheguei a uma pequena cidade do interior nordestino. Depois de andar quase uma hora por uma estrada de terra batida, cheguei em frente a antiga casa de portão amadeirada com paredes pintadas de amarelo na Rua das Azeitonas que eu tanto procurava.
Era uma manhã de domingo. Meu coração subiu a boca quando coloquei minha mala no chão que agora parecia mais pesada do que nunca. Enquanto eu buscava coragem para tocar o mesmo sininho de antes ainda colado no portão, um cachorro passou por mim correndo atrás de um bem-te-vi que rapidamente abrigou-se em uma cerejeira.
Eu imaginava se papai estava vivo ou as maneiras em que ele possivelmente me receberia. Em minha mente gritava a ideia de que ele me expulsaria dali à vassouradas. Uma gota de suor desceu minha costa quando fui tomada pela covardia ao me abaixar para pegar minha mala do chão e fugir dali “enquanto ainda tinha tempo”, porque eu não estava preparada para ser tratada rudemente por ele, embora merecesse isso. Ou receber a noticia de que ele não estava mais vivo.
Estava prestes a agir conforme minha fantástica ideia, quando ouvi a porta da casa se abrir e de lá sair o corpo familiar que eu planejava reencontrar.
- Luzia? – perguntou, ele estreitando os olhos como se tentasse confirmar o que via – é você que está aí?
Como resposta a sua pergunta, de minha boca, nenhuma palavra se ouviu. Apenas lágrimas se formaram em meus olhos.
Ele mantinha-se da mesma maneira que eu me lembrava: chapéu com abas largas de palha para proteger o rosto do sol, camisa de botões enfileirados na sua cor favorita, bermuda de tecido e suas inseparáveis sandálias de dedo (que particularmente não faziam o meu tipo, mas o deixam “mais ele” e eu gostava delas apenas por isso). Nossos olhos se encontram e meus olhos arregalaram quando vi um sorriso se desmanchar como manteiga no seu rosto.
Incrédula, coloquei uma mecha de cabelo atrás da orelha quando ele deixou de lado sua vara de pescar e marchou em minha direção.
Esperei que dele viesse um sermão ou receber um tapa de sua mão, bem merecido por meu abandono. Contudo, ao destravar o portão, ele simplesmente me abraçou.
- eu sabia que você voltaria, Luzia. Eu sabia! – disse, ele apertando o abraço como se quisesse confirmar se de fato eu era real – eu orei todas as noites por você minha filha, desde quando você fugiu com aquele rapaz, pedi a Deus que Ele te trouxesse de volta para casa.
Estupefata, eu desabei em seus braços.
* * * *
Ele mantinha o mesmo bigode farto, mas agora, suas mãos não eram tão firmes quanto antes, nem sua postura era forte e viril como antigamente. Seus cabelos escondidos pelo chapéu agora estavam grisalhos e sua pele, coberta por rugas. Mas, mesmo após todos esses anos, ele continuava sendo o meu farol, o meu remédio, o meu pomar.
Papai era tudo o que eu precisava para ser feliz.
Ele me levou à beira do rio que ele planejava ir antes de minha chegada. Ao ajustar a sua vara de pescar, ele me pediu para vigiar a linha presa ao anzol enquanto ele organizava o tempero de nosso almoço.
Assim que a vara deu sinais de que havia capturado alguma coisa, minha triste habilidade como pescadora rapidamente foi exposta e novamente ele me socorreu, como fazia quando eu era criança. Uma lágrima percorreu o meu rosto.
Eu o envolvi em meus braços como fiz quando pequena. Fechei os olhos antes de pronunciar as palavras que deveria ter dito durante toda a minha existência: - eu te amo, papai – sussurrei em seu ouvido.
Ele parece paralisado diante do que ouviu e eu lhe disse mais uma vez. Como resposta, ele beijou minha testa, me permitindo sentir mais uma vez um familiar formigamento com o roçar do bigode na pele.
- Estou feliz por essa jornada que a vida me deu ao estar ao seu lado – falei, apertando sua mão – eu sinto muito por ter tomado a decisão errada... Sinto muito por me dar conta disso tão tarde!
- nunca é tarde! – respondeu, ele à sua simplicidade – você errou minha filha, mas está de volta. Isso é o que importa!
- eu senti sua falta!
Ele não pronunciou uma palavra, mas o seu semblante sereno me dizia que ele sentia o mesmo que eu. Eu estava feliz pela esperança que nascia em meu coração de poder recomeçar minha vida ao lado do meu pai. Do meu herói. Do meu querido amigo.