Sobre o amor: conto 6 - As férias de Isabel. Por Jeiane Costa
No auge dos meus dezessete anos, enquanto acontecia a revolução cubana, João Goulart tornava-se presidente do país e os Beatles faziam o maior sucesso na mídia, eu descobria o quanto o batom vermelho deixavam os meus lábios mais atraentes ao mesmo tempo em que encontrava o significado de se apaixonar pela primeira vez.
Eu estava de férias e finalmente viajava para a antiga capital brasileira, a cidade da “garota de Ipanema”. Fiquei hospedada na casa da tia Clarice, juntamente com mamãe. E ao contrário do que eu esperava, tudo a primeira vista parecia monótono naquele lugar, pois ouvia-se apenas o burburinho de passarinhos cantarolando em toda redondeza.
Esse marasmo todo mudou quando recebemos a ligação de uma amiga da tia Clarice, fofocando que o filho mais novo da família Martins havia retornado ao Brasil após longos anos no exterior estudando fora. Minha mãe, então encontrou o momento perfeito para planejar o meu casamento com esse desconhecido, sob o pretexto de que na minha idade já me tinha em seus braços. E para isso, ela prontamente incluiu os Martins em nossa programação da noite: em um restaurante fino, no estilo que ela adorava frequentar – daqueles que servem comida francesa e vinho. Segundo ela, essa seria a minha chance!
- Ajusta a postura, Isabel! – sussurrou, ela enquanto acomodava o guardanapo impecavelmente no colo quando o tão esperado grupo de três pessoas finalmente se sentou conosco. Esforcei-me para não torcer os lábios.
Com uma alegria perturbadora, fui apresentada a sra. Laura, a seu marido Joaquim e nada mais, nada menos que ele: Afonso Martins. Ao sentir sua mão desajeitada apertar a minha num cumprimento mole, fechei os olhos por um instante implorando aos céus que esse teatro terminasse logo.
Nesse momento, um certo garçom apresentou o menu, sendo completamente indiferente a nossa conversa. De sua parte, ouviu-se apenas o profissionalismo que o restaurante prometia. Endireitei-me a mesa conforme mamãe ordenara.
Tia Clarice escolheu cassoulet. Mais uma olhada no cardápio e... Mamãe fazia-me novamente uma pergunta que eu parecia eu não ter ouvido.
- sim? – respondi, obrigando-me a participar de tudo aquilo
- o que vai querer?
- humm... o mesmo que você.
Definitivamente não estávamos na mesma sintonia.
Ela arqueou a sobrancelha como resposta. Eu dei de ombros, fitando o garçom discretamente. Afonso falava algo animadamente sobre sua carreira no ramo de economia. Bastou-me uma breve olhada para mamãe para perceber no quanto ela estava nas alturas com toda aquela conversa sem graça – mesmo sem entender parte de todo aquele contexto técnico que ele se referia.
O jovem garçom prontamente anotou o pedido e em instantes sumiu de nossas vistas. No momento certo, tivemos nossa comida e eu tive o privilégio de experimentar sopa de cebola, graças ao bom gosto de quem havia pedido – obrigada, mamãe! Para quem não tinha nenhum apego a cebolas, estava... fantástico!
A noite seguiu seu percurso. Cada um na sua. Enquanto Afonso demonstrava sua habilidade promissora na sua carreira profissional, eu observava a habilidade daquele garçom desconhecido e imaginava o que ele escondia por detrás de toda daquela postura.
* * *
- O encontro saiu conforme eu planejava! – disse, mamãe ao desligar o telefone com um sorriso emoldurado no rosto. Afonso prometeu que em breve nos faria uma visita!
Tia Clarice assentiu, segurando a xícara de café nos lábios. Nossos olhos se encontraram. E enquanto mamãe ia a cozinha para pegar mais biscoitos para o chá, um ar de cumplicidade me cercou, quando discretamente tia Clarice sussurrou: - deixei algo no terraço para você, querida. Vá depressa, antes que ela volte! – disse, deixando escapar uma piscadela.
Era uma bicicleta pintada de vermelho, com um pequeno mapa da cidade na cestinha. Eu realmente deveria agradece-la por isso. Eu precisava disso. Respirar novos ares. Enquanto percorria pelo bairro, descobri uma cafeteria antiga, uma loja de disco de vinil, uma livraria, vários cinemas de rua e alguns restaurantes pomposos.
Acompanhando a beleza da cidade, passei além das marcações feitas caprichosamente por tia Clarice e acabei me perdendo. Ao mesmo tempo em que afugentava o desespero de mim para encontrar o caminho de volta, fui surpreendida por um cadilac preto que ao passar em alta velocidade me obrigou a desviar a direção. Todavia, um monte de areia que estava no caminho foi o suficiente para me fazer perder o controle. Me senti uma batata jogada dentro de uma panela.
- você está bem? – disse, uma voz masculina apoiando as mãos nos joelhos de modo que poderia me olhar melhor - Vi quando você caiu! Aquele cara é um tremendo imbecil!
Meu rosto congelou. Meus lábios não sabiam como se encontrar. Um torpor percorreu por todo meu corpo. Quando... quando foi que ele chegou aqui?
- Não acredito nisso! – sibilei, ajustando a barra do meu vestido, imaginando que deveria existir uma maneira mais exuberante para encontra-lo. Uma breve inspeção por meu corpo me fez suspirar de alívio até o momento em que fiquei de pé. Uma dor aguda me percorreu me impedindo de prosseguir.
- consegue andar?
Assenti, sendo denunciada pelos meus próprios pés ao dar um novo passo.
- você se importaria? – perguntou, ele subindo prontamente na bicicleta. Meu coração foi à boca, quando me apoiei em seu quadril para me acomodar na garupa da bicicleta. Após mostrar-lhe a direção que eu percorria, nos afastamos de lá.
* * *
Havia uma pequena praça na esquina próxima à casa de tia Clarice. Pedi que parássemos ali.
- você está bem? – perguntou, ele novamente – eu vi você passar por mim. Parecia um tanto assustada.
Assenti, sentando-me ao seu lado. – na verdade... eu estava perdida... –admiti. Algo em sua expressão um tanto presunçosa me fez perceber que de alguma maneira, parecia como se eu não soubesse mais respirar.
- estou no Rio pela primeira vez. Minha mãe está enlouquecendo com uma ideia teimosa, e minha tia ao tentar me ajudar a sair dessa loucura, ofereceu essa bicicleta. Estava tão animada com a ideia que acabei saindo do roteiro que ela marcara pra mim no mapa. Fiquei horas a fio tentando encontrar o caminho de volta para casa... quando tudo aconteceu. – Expliquei
- quais lugares você já visitou?
Mostrei a ele o mapa que minha tia me deu e ele emitiu um som como um assobio.
- sua tia conhece lugares legais... Mas eu posso te mostrar outros pontos daqui, óh! –disse, segurando com as pontas dos dedos o lóbulo da orelha – o que achas?
Com um sorriso aceitei o convite.
Quando resolvi voltar para casa, para meu desgosto havia um carro estacionado na porta. Afonso havia passado por lá para uma visita. Mamãe prontamente apareceu com sua habitual postura dominadora. Seu olhar feroz pousou sobre Luis como se ele fosse uma barata que deveria ser esmagada com a sola de seu sapato. Deixando escapar por entre os lábios um silvo, ela me agarrou pelo braço, arrancando-me de perto dele. Eu ainda tive tempo de ver seu rosto estupefato antes de ter a porta violentamente fechada atrás de mim.
* * *
- está tudo perdido... Depois daquela cena horrorosa... Eu não acredito mais que ele virá me encontrar! - choraminguei
- calma, Isabel! – pediu, tia Clarice com ar de experiência - Se esse rapaz realmente gostou de você, ele virá te buscar. você vai ver!
Ela estava certa. No dia seguinte, enquanto eu lia uma revista de costura, vi alguém me chamando pelo portão. Meus lábios se desmancharam prontamente em um sorriso ao notar quem me procurava.
Foi a partir daquele momento, que passei a usar um batom vermelho.
Com a ajuda de tia Clarice, Luis e eu nos encontrávamos todas as tardes enquanto mamãe tirava sua soneca. Aos poucos eu pude descobrir a pessoa por detrás daquele impecável uniforme e postura de garçom: juntos fomos a praia, a um cinema antigo de rua, ao Cristo Redentor, ao Pão de Açúcar e ele me apresentou o seu projeto que futuramente seria inaugurado: um restaurante que ele orgulhosamente chamou de “Brasileiríssimo” - um estabelecimento que ao contrário do que ele trabalhava, ofereceria exclusivamente a gastronomia brasileira, e, apesar de simples era encantador.
Estar ao seu lado era sinônimo de aventura: sempre havia um novo lugar para desbravar, uma nova conversa para me encantar. Ao lado dele o Rio de Janeiro se transformava em uma cidade maravilhosa!
* * *
Estava no quarto feliz da vida quando mamãe entrou num rompante. A alegria desmanchou-se no ar.
- como você pode ser tão egoísta? – acusou, ela – estou aqui me desdobrando para você ter um bom casamento com o Afonso e simplesmente encontro você na companhia daquele rapaz! Se fosse um dos Martins todo o meu esforço estaria perdido naquele instante
- o nome dele é Luis, mamãe. Você...
- Não me interessa quem ele seja, Isabel! – explodiu, ela - Você tem que pensar no seu futuro ou vai passar a vida inteira trabalhando como costureira! É isso o que você quer?
- mamãe... – repliquei
- você está proibida de se encontrar com aquele rapaz! – ordenou ela, fechando a porta.
* * *
Duas semanas se passaram desde a ultima vez que Luis e eu perambulamos juntos pela cidade. Na manhã seguinte eu partiria de volta ao meu destino. Eu estava deitada quando mamãe abriu a porta do quarto. Fechei os olhos na expectativa de conseguir fingir estar dormindo.
- Isabel... sei que você está acordada! – disse ela, impaciente entre a porta
Entreguei-me dramaticamente ao meu fingimento. Ela bufou.
Então devo dizer aquele rapaz que você não quer ve-lo? – replicou, ela ameaçando fechar a porta - Entendi!
- espera! – levantei-me de supetão – Luis está aqui? – perguntei, confusa – mas você não havia proibido?
- cometi um erro – respondeu, ela dando de ombros.
Sei que ela jamais explicaria o significado disso. Mamãe era orgulhosa demais. Quando me levantei da cama, vi a pequena silhueta de tia Clarice escondida atrás dela o que foi o suficiente para me fazer reprimir um sorriso.
* * *
Corri em direção à mesma praça que conversamos pela primeira vez. Em silêncio, eu simplesmente fechei os olhos e o abracei o mais forte que pude, depositando todo o amor que em mim estava. Para minha surpresa, ele se aproximou de mim mais uma vez e nossos lábios pela primeira vez se tocaram. Foi um gesto sutil, mas o suficiente para me fazer desejar com todas as minhas forças que o tempo parasse ali, naquele exato momento.
Conversamos como se o tempo não fosse suficiente para nós dois. Pedi que ele fosse embora primeiro. Feliz, guardei no bolso da minha saia um pequeno envelope que ele havia me entregue, e, no coração, o beijo que ele me dera. Apesar de ser um momento triste, eu tinha um conforto.
Eu sabia que essa não seria a ultima vez que nos veríamos. Nós voltaríamos um para o outro no próximo verão. Tive certeza disso quando abri o envelope que ele me entregara. Dentro, havia uma pequena bússola antiga enrolada em uma mensagem. Nela estava escrito: “Isabel, que essa bússola traga você de volta para mim”.
Eu sabia que da próxima vez que nos encontrássemos, teríamos todo o tempo do mundo.
Por que seria para sempre.
Jeiane Costa.
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